Arbitragem com Poder Público não pode depender de regulamentação

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No primeiro semestre de 2013, o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, convocou um grupo de especialistas para produzir anteprojeto de lei para revisar a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996) e criar o marco legal da mediação extrajudicial no Brasil.
A comissão, composta por 20 membros[1], trabalhou durante seis meses e apresentou, no final de setembro daquele ano, o resultado do seu trabalho, que deu origem a dois projetos de lei: o PLS 406/2015, que atualiza a Lei de Arbitragem, e o PLS 405/2013, que propõe o marco regulatório da mediação extrajudicial.
Após rápida tramitação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o PLS 406/2015 foi aprovado e, em fevereiro de 2014, remetido para a Câmara. Em 10 de março de 2015, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara a redação final do Projeto de Lei 7.108-B, de 2014, proveniente do Projeto de Lei do Senado (PLS 406/2013)
A ideia de revisar a Lei de Arbitragem brasileira, apesar de ser norma relativamente nova (promulgada em 1996), justifica-se no profundo amadurecimento vivenciado ao longo dos últimos anos, quando a via arbitral, adotada com igual entusiasmo por advogados e jurisdicionados, deixou de ser mero método de resolução de disputas para ser verdadeira “ferramenta comercial”[2]. Além disso, foi a partir da década de 1990 que o Brasil viu-se integrado de forma irreversível no cenário comercial internacional, com empresas brasileiras se tornando multinacionais e multinacionais estrangeiras se instalando no país. Fusões, aquisições, cisões, negócios internacionais complexos formatados por partes de diferentes nacionalidades, tudo a demandar resoluções igualmente elaboradas dos litígios dali decorrentes. Nesse período floresceu a arbitragem brasileira, reconhecida internacionalmente, e o Judiciário pátrio, sempre que solicitado, apresentou soluções inteligentes no sentido de prestigiar a jurisdição contratual.
Por isso, desde o início, a ideia da Comissão de Juristas do Senado foi prestigiar e fortalecer o instituto, revisar com vistas a aprimorar a lei e catalisar suas potencialidades. A gênese do Projeto de Lei recentemente aprovado pela Câmara não decorreu da ideia de que a Lei de Arbitragem (9.307.1996) estivesse obsoleta e precisasse ser substituída, mas, pelo contrário, surgiu da percepção de que a norma foi tão bem aceita e com tamanho entusiasmo, que evoluiu muito rápido em pouco tempo.
A consolidação da arbitragem, naturalmente, suscitou questionamentos, e o Judiciário, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, teve de criar soluções práticas. O projeto de lei busca consolidar certos avanços jurisprudenciais. Assim o faz ao prever a possibilidade de submissão à arbitragem dos litígios envolvendo a Administração Pública direta e indireta, bem como ao disciplinar o processamento das tutelas cautelares e de urgência preparatórias e incidentais ao processo arbitral e ao definir a interrupção da prescrição a partir da instauração da arbitragem.
Além disso, o legislador busca aprimorar e fortalecer o instituto, prevendo outras inovações. Visa ampliar a arbitrabilidade para as relações de consumo e trabalhistas (respeitadas determinadas condições). Pretende criar a “carta arbitral”, importante instrumento a reger a dinâmica das relações entre árbitros e magistrados.
O projeto ousa ainda sobre temas relativamente polêmicos. Por exemplo, ao prestigiar a autonomia de vontade das partes e permitir que elas afastem as listas obrigatórias de árbitros previstas nas instituições arbitrais, pode tocar em interesses de vários profissionais e entidades (árbitros, advogados e câmaras). Ao criar norma na Lei das Sociedades Anônimas que obriga todos os acionistas à convenção de arbitragem prevista em estatuto social, ainda que garantido o direito de recesso ao dissidente e previsto um prazo razoável, pode suscitar controvérsias.
A Câmara aprovou o Projeto do Senado quase em sua integralidade, apresentando apenas duas emendas. A primeira é mera correção formal, pois propõe a subtração de trecho da ementa original que fazia referência ao “…incentivo ao estudo do instituto da arbitragem”, já que o mesmo não constou da redação final do projeto de norma. A segunda, ao contrário, possui cunho substancial, pois altera de forma importante a proposta original do Senado em relação às arbitragens relacionadas à Administração Pública.
Essa emenda representa um retrocesso e coloca em risco as arbitragens relacionadas à Administração Pública, pois condiciona sua submissão à arbitragem “desde que previsto no edital ou nos contratos da administração, nos termos do regulamento”. Condicionar à regulamentação posterior, além de temerário, pois conduz à conclusão lógica de que sem o regulamento é vedada a arbitragem envolvendo a Administração Pública, constitui um passo atrás, vez que a jurisprudência do STJ já havia evoluído no sentido de permitir a arbitragem dos entes da administração, mesmo sem previsão em edital ou contrato.
Por força dessa emenda, o projeto de lei volta ao Senado. A proposta de alteração, nesse ponto, há de ser rejeitada. É necessário o esforço da comunidade jurídica interessada na arbitragem, especialmente do presidente da Comissão de Juristas do Senado, ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, que a lidera, emprestando um pouco do seu carisma e conhecimento, a fim de que o projeto seja mantido em sua formatação original, e o Brasil continue como um dos países vanguardistas da arbitragem mundial.
Nas próximas semanas aproveitarei este espaço gentilmente cedido pela ConJur para tecer alguns comentários sobre as principais modificações legislativas previstas no referido projeto, além de analisar outros temas relevantes e de interesse do estudioso da arbitragem.
[1] A Comissão de Juristas foi presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, sendo composta ainda pelo ministro Walton Alencar Rodrigues, do TCU, senador Marco Maciel, Ministra Ellen Gracie, e pelos juristas José Antônio Fitchner, Caio Cesar Rocha, José Rogerio Cruz e Tucci, Marcelo Rossi Nobre, Francisco Antunes Maciel Mussnich, Tatiana Lacerda Prazeres, Adriana Braghetta, Carlos Alberto Carmona, Eleonora Coelho, Pedro Paulo Guerra Medeiros, Silvia Rodrigues Pachikoski, Francisco Maia Neto, André Chateaubriand Martins, José Roberto Castro Neves, Marcelo Henriques de Oliveira, Roberta Rangel, e José Eduardo Arruda Alvim.
[2] Arnoldo Wald e Ana Gerdau de Borja em artigo publicado no ConJur em 1/01/2015.
Caio Cesar Rocha é advogado, sócio do escritório Rocha Marinho e Sales Advogados e membro da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de lei para revisar a Lei de Arbitragem. Tem doutorado em Processo Civil pela USP e pós-doutorado pela Columbia University, de Nova York.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 14 de março de 2015, 8h09

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