Qual a relação entre mediação extrajudicial, precedentes e negócios jurídicos processuais?
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Em “Oréstia”, trilogia composta pelas tragédias “Agamemnon”, “Coéforas” e “Euménides”, o dramaturgo grego Ésquilo descreve situação em que talvez pela primeira vez possa ter sido verificado o conflito, por vezes binário, entre conciliação e julgamento. Trata-se do julgamento de Orestes, que, motivado por vingança decorrente da morte de seu pai, Agamemnon, matou sua mãe, Clitemnestra e o amante, Egisto. Como consequência do crime, foi julgado em Atenas, tendo a deusa Palas Atenas que, segundo a mitologia grega, era deusa da civilização, da sabedoria, da estratégia em batalha, das artes, da justiça e da habilidade, diante de si a seguinte questão: as fúrias[1], também conhecidas como Erínias, personificação grega para a vingança, demandavam condenação, na medida em que um crime havia ocorrido; e acaso assim não fosse decidido, prometiam atormentar toda a humanidade e, principalmente, a cidade de Atenas; por outro lado, Apolo, atuando na defesa de Orestes, postulava sua absolvição. Ao final, depois da deliberação dividida em seis votos pela condenação e seis pela absolvição no júri composto por doze atenienses, Palas Atena proferiu o que ficou conhecido como o “Voto de Minerva”, absolvendo o acusado e proclamando que o Tribunal instituído era de Justiça e não de vingança.
As fúrias, evidentemente, ficaram furiosas, para ser tautológico, mas foram acalmadas por Palas Atena que a elas prometeu não apenas mansões e templos, senão também que atuariam às escondidas no ser humano de maneira eterna, vistas e sentidas somente por aqueles que tivessem cometido algum crime que demandasse vingança ou reparação[2]. Sua atuação, doravante, seria enclausurada no mais íntimo recôndito do pensar e agir humano e, conquanto por vezes viessem à tona por oportunidade de julgamentos públicos, a fundamental execução de suas atribuições se daria em um nível profundo, podendo até mesmo gerar a loucura de quem fosse por elas atormentado.
Há muito o que analisar neste julgamento[3]. Gostaria, todavia, de centrar a atenção em dois aspectos: o primeiro, relacionado à atuação de Palas Atena, que, entendendo configurada causa apta à absolvição de Orestes, ainda sim teve que negociar com as Erínias a fim de que a cidade de Atenas não fosse atingida pela sua atuação incessante e perniciosa; a segunda, que a prevalência no julgamento final não se deu pela letra da lei vigente, ou seja, materialidade e autoria inequívocas pesavam contra Oreste, que, ainda assim, foi absolvido.
Com relação ao primeiro ponto, interessante traçar um paralelo com o que verificamos atualmente no exercício da função jurisdicional. O reconhecimento de efeitos da decisão para além do próprio caso decidido não é novidade e, em especial na vertente econômica do direito, vem sendo trabalhada e discutida como uma forma de externalidade produzida pela decisão judicial. Entre várias questões geradas pela externalidade, há uma que merece reflexão: os efeitos externos da decisão judicial poderiam ser objeto de transação, ou, em termos que melhor se adequariam à atuação de Palas Atenas, conciliação?
Uma decisão que reconheça a abusividade de juros cobrados por determinadas instituições financeiras não implicaria, por si só, aumento da taxa de juros cobrada pelo mercado como forma de “compensar” aquela “perda” decorrente da decisão judicial; mas, se pacificada a jurisprudência no sentido da proscrição da taxa praticada, esta consequência poderia se verificar, sem sombra de dúvida. Então, configurada a externalidade que decorrerá muito provavelmente da decisão judicial final, não seria o caso de demandar do órgão jurisdicional uma prospectiva atuação também no sentido de aplainar, minorar ou ao menos relativizar os efeitos da externalidade?
Parece-me que sim. Ao órgão final competente para a tomada final da decisão caberá, enquanto exigência de legitimação não da decisão, mas de sua atuação no conjunto considerada, não apenas decidir a causa, mas verificar os efeitos decorrentes da decisão e, se for o caso, conciliar interesses que estejam situados, em um primeiro momento, para além da coisa julgada intersubjetiva. Assim agindo, garantirá o direito tanto em nível intersubjetivo, adjudicando-o a quem o titularize, como também a justiça aos demais indiretamente atingidos pelo provimento decisório.
Essa não é uma tradição no ambiente judicante atual brasileiro. Em algumas Cortes Supremas de Justiça, entretanto, esse tipo de atuação jurisdicional já foi realizado. Alguns exemplos podem ser colhidos da prática decisória externa: a) julgamento do caso referente à poluição do rio Matanza-Riachuelo, pela Corte Suprema de Justiça da Nação argentina, em que, para além da decisão levada a cabo, foram criados grupos de estudo, devidamente fiscalizados, envolvendo todos os entes federativos, as empresas envolvidas e a comunidade, para despoluição de outros rios, além da educação ambiental[4]; b) o conhecido caso Brown Vs. Board of Education of Topeka, decidido pela Corte Suprema norte-americana, em que, ademais da decisão do conflito posto à cura dos juízes, também foram criadas, fiscalizadas e praticadas políticas públicas contra discriminação racial que até os dias atuais são implementadas, traduzidas por ações afirmativas.
No Brasil, não temos essa tradição e, francamente, sequer sabemos bem como levar à frente esse tipo de atuação, já que inexistem institutos direcionados especificamente a este fim. A despeito disso, contudo, uma tentativa bem interessante foi realizada pelo Supremo Tribunal Federal em momento prévio e posterior ao início do julgamento da questão envolvendo a dívida pública existente entre entes federativos. O Ministro Luiz Edson Fachin, relator do Mandado de Segurança 34.023/DF, decidiu, antes de postular ao Presidente da Corte que a ação fosse pautada para julgamento, realizar reunião com os envolvidos, de sorte que, mediados pelo Poder Judiciário presentado pelo Ministro Relator, fosse tentada uma solução não apenas para o caso julgado, senão para todas as situações correlatas.
O resultado, infelizmente, não foi positivo no sentido pretendido, mas, superando dificuldades de cabimento do instrumento processual utilizado e empreendendo visão para além do conflito, o Supremo, agora já em formação plenária, decidiu pela suspensão do feito pelo prazo de 60 (sessenta) dias para que nova tentativa de organização do tema, alinhamento de condutas e negociação das dívidas fossem efetivadas.
A atuação é louvável e talvez tenha decorrido do mesmo pensamento de Palas Atena por oportunidade do julgamento de Orestes. Por vezes, a solução conciliadora garantirá mais direitos para o futuro do que simplesmente o peso da coisa julgada material decorrente da adjudicação forçada. Neste ponto, aliás, adjudicação, mais restrita, aparta-se de acertamento, mais amplo.
Seja antes, durante ou depois do julgamento, parece, ao menos a mim, que a legitimidade do Poder Judiciário somente estará completa acaso o acertamento seja perseguido, nele incluída a possibilidade de negociações e transações que garantam, com efeitos erga omnes, o resultado inter partes alcançado. Para isso, a visão prospectiva de Palas Atena continua atual e deve ser praticada.
Notas e Referências:
[1] As fúrias eram as seguintes: Alecto (Ἀληκτώ, a implacável), encarregada de castigar os delitos morais como a ira, a cólera, a soberba, etc.; Megera personificação do rancor, a inveja, a cobiça e o ciúme, com o papel de castigar os delitos contra o matrimônio, em especial a infidelidade; e Tisífone, a vingadora dos assassinatos (patricídio, fratricídio, homicídio).
[2] Interessantíssimo relato do julgamento de Orestes pode ser visualizado em http://cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-matriarcado-e-o-voto-de-minerva/333, em texto elaborado por Luciane Félix. Acesso em 25 maio de 2016.
[3] A análise do julgamento e o confronto direito Vs. justiça também foi explorado por Paul Ricoeur nas seguintes obras: RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2005. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol. I. A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
[4] Caso descrito por LORENZETTI, Ricardo Luis (2009). Teoría del Derecho Ambiental. Buenos Aires, La Ley, p. 136-138.
Por Tiago Gagliano, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.
Fonte: Empório do Direito – 31/05/2016