Congresso Nacional mantém vetos à reforma da Lei de Arbitragem
23 de setembro de 2015É possível incluir na jurisdição arbitral partes que não assinaram contrato gerador do litígio
7 de outubro de 2015
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A Lei 13.129, de 26.5.15, ao alterar a lei de arbitragem (Lei 9.307, de 23.9.96), pôs fim à controvérsia a respeito da possibilidade ou não de utilização de arbitragem pela administração pública. No parágrafo 1º do artigo 1º, estabelece que “a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Antes disso, algumas leis já previam o uso de mecanismos privados de resolução de disputas, suprindo a omissão da Lei 8.666/93. É o caso do artigo 23-A da Lei 8.987/95, do artigo 11, III, Lei 11.079/04, além de normas contidas nas leis sobre telecomunicações, transportes aquaviários e terrestres, energia elétrica, dentre outras.
A Lei 9.307 não autorizou nem proibiu o emprego da arbitragem pela administração pública, mas o seu artigo 1º é bastante genérico ao estabelecer que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Este último requisito gerou controvérsias sobre a possibilidade ou não de uso de arbitragem pela administração pública.
A Lei 13.129/15 resolveu a controvérsia quanto ao cabimento ou não de cláusula compromissória nos contratos administrativos em geral, mas deixou em aberto a dúvida quanto ao alcance da expressão “direitos patrimoniais disponíveis”. Muitos critérios têm sido apontados pela doutrina e jurisprudência para indicar as hipóteses de cabimento da arbitragem pela administração: é possível usar a arbitragem quando se trata de (i) ato de gestão, (ii) em relação aos serviços comerciais e industriais do Estado, (iii) nos atos negociais, em que a administração se iguala ao particular, porque age sem prerrogativas públicas, (iv) nos contratos de direito privado, (v) nas empresas estatais que exercem atividade econômica com base no artigo 173, parágrafo 1º, da Constituição.
Na realidade, todos os critérios são válidos. Uns não excluem os outros. No entanto, alguns aspectos são especialmente relevantes, a começar pela análise dos vocábulos “patrimônio” e “disponível”.
O vocábulo “patrimônio”, no Direito Administrativo, tem sentido bastante amplo, abrangendo o patrimônio econômico, o moral, o cultural, o histórico, o paisagístico, o artístico, o arqueológico, dentre outros. Mas, para fins de interpretação da expressão “direitos patrimoniais disponíveis”, o que interessa é o aspecto econômico. Na definição de Clóvis Beviláqua, patrimônio é o “complexo das relações jurídicas de uma pessoa, que tiverem valor econômico”.
Segundo o autor, incluem-se no patrimônio: a posse, os direitos reais, os direitos obrigacionais, as relações econômicas do Direito de Família, as ações correspondentes a esses direitos. E excluem-se do patrimônio os direitos individuais à existência, à honra e à liberdade, os direitos pessoais entre os cônjuges, os direitos de autoridade entre pai e filho, os direitos políticos.
No âmbito do Direito Público, também existem direitos que admitem valoração econômica e outros que não a admitem. Por exemplo: é possível dizer que determinadas atividades exercidas pelo Estado são passíveis de valoração econômica (são as atividades econômicas por ele exercidas direta ou indiretamente). Outras não admitem essa valoração, como determinados serviços sociais do Estado, que correspondem aos direitos sociais do homem, considerados como direitos fundamentais.
O antigo Regulamento do Código de Contabilidade da União (Decreto 15.783, de 8.11.1922) ao tratar dos bens públicos, chamava os bens de uso especial de patrimoniais indisponíveis, porque, embora passíveis de avaliação econômica, têm uma destinação pública que os torna indisponíveis; os bens dominicais eram chamados de patrimoniais disponíveis, porque, além de serem passíveis de valoração econômica, não têm uma destinação pública que justifique a indisponibilidade. As duas primeiras categorias são res extra commercium: estão fora do comércio jurídico de Direito Privado. Portanto, não podem ser objeto de nenhuma relação jurídica regida pelo Direito Privado, como é o caso do compromisso arbitral e da transação.
Também é preciso tomar cuidado com o vocábulo “disponível”. Ele pode dar a errônea impressão de que significa livre disposição, liberalidade, mas não é esse o sentido correto. Quando se diz que os bens dominicais são disponíveis, é apenas no sentido de que eles podem ser objeto de negociação pelo poder público, por meio de institutos regidos pelo Direito Privado, como compra e venda, locação, permuta, doação. Isto porque, enquanto não têm destinação pública, são passíveis de valoração econômica.
À primeira vista, é chocante aceitar que possam existir, com relação ao patrimônio público, direitos patrimoniais disponíveis. A tendência é afirmar que não existem direitos patrimoniais públicos que sejam disponíveis. Isso decorre do apego ao conhecido princípio da indisponibilidade do interesse público, explicado com maestria por Celso Antônio Bandeira de Mello, em seu Curso de Direito Administrativo (São Paulo: Malheiros, 2015, p. 76): “significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade — internos ao setor público — não se encontram à livre disposição de quem quer que seja por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los — o que é também um dever — na estrita conformidade do que dispuser a intentio legis”.
O interesse público é sempre indisponível pela administração pública, porque ele é de titularidade da coletividade, e não do poder público. A administração pública apenas o administra, protege e tem o dever de dar-lhe efetividade. Mas não pode dele dispor livremente porque não lhe pertence. Portanto, é correto afirmar que o interesse público é indisponível, mas isso não significa que todos os direitos patrimoniais, no âmbito do direito público, sejam indisponíveis. Por vezes, a disponibilidade de um patrimônio público pode ser de mais interesse da coletividade do que a sua preservação. A título de exemplo, cite-se o direito do contratado à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Aceita-se essa medida, porque é do interesse público garantir a continuidade dos contratos administrativos.
Há que se lembrar de que a Lei 8.666/93 admite os contratos de Direito Privado, implicitamente, no artigo 62, parágrafo 3º, I, ao mandar aplicar o disposto nos artigos 55 e 58 a 61 “aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o poder público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido predominantemente por norma de direito privado”. O compromisso arbitral tem natureza contratual, da mesma forma que a transação, conforme artigos 840 a 853 do Código Civil. Portanto, não há impedimento para que a administração pública participe de convenção de arbitragem, a qual se regerá pela legislação específica (Lei 9.307/96, alterada pela Lei 13.129/15), mas submetendo-se às normas da Lei 8.666/93, no que couber.
Como nem toda matéria pode ser objeto de decisão pela via da arbitragem — mas apenas os direitos patrimoniais disponíveis —, é importante que os instrumentos convocatórios de licitação e os contratos contenham cláusula prevendo a arbitragem e delimitando as matérias sobre as quais ela é possível. O fato de ser inserida a cláusula de arbitragem nos contratos administrativos não significa que ela possa referir-se a todas as matérias de que trata o contrato, porque algumas podem se referir a direitos patrimoniais indisponíveis.
Os contratos administrativos contêm cláusulas regulamentares e cláusulas financeiras. As primeiras referem-se ao próprio objeto do contrato, à forma de sua execução; elas decorrem do poder regulador da administração pública; são fixadas e alteradas unilateralmente pelo poder público. Mas as cláusulas financeiras, que dizem respeito à remuneração do contratado e ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato têm natureza tipicamente contratual. Por isso mesmo, não podem ser alteradas unilateralmente pelo poder público, mas podem ser objeto de acordo entre as partes.
Também não teria sentido a instalação de um procedimento de arbitragem para decisão de conflito que envolva prerrogativas de autoridade que só o poder público pode exercer. Não pode um tribunal de arbitragem decidir sobre as prerrogativas do artigo 58 da Lei 8.666 (alteração unilateral, rescisão unilateral, aplicação de penalidade etc). Mas pode decidir sobre os efeitos patrimoniais decorrentes do uso de prerrogativas próprias do poder público, como as de alterar e rescindir unilateralmente os contratos, que podem provocar o desequilíbrio econômico-financeiro. São aspectos que se incluem no conceito de direitos patrimoniais disponíveis, não porque a administração pública possa abrir mão de seus direitos, mas porque se trata de direitos passíveis de valoração econômica.
Visto o mesmo argumento sob outro ângulo, pode-se partir da distinção entre atos de império e atos de gestão. Os primeiros são praticados pelo poder público como autoridade, como ente que atua em nome do Estado. As decisões sobre desapropriação, tombamento, servidão administrativa, por exemplo, não podem ser objeto de apreciação por árbitro, mas os efeitos patrimoniais dessas decisões podem, porque são passíveis de valoração econômica. Já os atos de gestão são praticados pelo poder público sem as prerrogativas próprias de autoridade, tal como ocorre com os contratos de direito privado celebrados pela administração pública, como compra e venda, locação, permuta etc. Os conflitos surgidos podem ser decididos pela via da arbitragem.
Os acordos feitos pela administração pública, como o compromisso e a transação, não são novidade no Direito positivo. Desde longa data é prevista para os processos judiciais a possibilidade de a administração pública confessar, desistir, fazer transação, firmar compromissos, sem que se alegue qualquer óbice de natureza jurídica. A exigência que a lei faz é que tais atos sejam autorizados por determinadas autoridades. Não é qualquer advogado público que, por sua própria decisão, pode confessar, desistir, fazer transação, no curso de um processo judicial em que atua como representante do Estado.
A Lei da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73, de 10.2.93) outorga ao advogado-geral da União a competência para “desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente” (artigo 4º, inciso VI). Esse dispositivo está regulamentado pela Lei 9.469, de 10.7.97, que estabelece as hipóteses em que o advogado-geral da União pode dispensar a inscrição de crédito, autorizar o não ajuizamento de ações e a não interposição de recursos, assim como o requerimento de extinção de ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos da União e das autarquias e fundações públicas federais (artigo 1º). O artigo 1º-B outorga igual autorização aos dirigentes máximos das empresas públicas federais até o limite de R$ 10 mil. Acima desse valor, a competência é do ministro de Estado ou do titular da Secretaria da Presidência da República a cuja área de competência estiver afeto o assunto. Se for empresa pública não dependente, basta a autorização do dirigente da empresa.
As leis orgânicas das Procuradorias dos estados e municípios costumam conter normas semelhantes.
Ora, não fazer a inscrição de crédito, desistir dos recursos, transigir, são medidas que implicam em abrir mão de direitos patrimoniais de natureza pública. Isso é muito mais do que permitir que terceiros — os árbitros — decidam sobre os direitos patrimoniais disponíveis. A única exigência diz respeito à competência para a decisão, que envolve aspecto de mérito, de apreciação do interesse público em jogo e que, por isso mesmo, é atribuída à determinada autoridade indicada na lei.
A Lei 13.129/15 inclui um parágrafo 2º no artigo 1º da Lei 9.307/96 estabelecendo que a “autoridade ou órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações”. O dispositivo causa certa perplexidade, porque não diz a que tipo de “acordo” se refere. Na esfera administrativa, não há previsão legal de competência para fazer transação. Esta é prevista no artigo 840 do Código Civil como modalidade de contrato. O dispositivo determina que “é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”.
Diante disso, é possível afirmar, por analogia, que a autoridade que celebra a convenção de arbitragem tem que ser autorizada pelo advogado-geral da União ou pelas autoridades indicadas nas leis estaduais e municipais. Se na via judicial essa é a autoridade competente, do mesmo modo ocorrerá se o litígio for submetido a juízo arbitral. Até com mais razão, por se tratar de modo amigável de solução de disputas. Trata-se de aplicação do velho brocardo jurídico: “Ubi eadem est ratio, eadem est jus dispositivo” (Onde existe o mesmo fundamento, aplica-se a mesma regra jurídica).
Seria irrazoável atribuir a todas as autoridades competentes para firmar contratos administrativos o poder de decidir sobre a submissão, ao juízo arbitral, dos litígios envolvendo a administração pública.
Por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, advogada e professora titular aposentada de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de setembro de 2015, 8h00