Noções e argumentos favoráveis
Arbitragem é método de solução de controvérsias, alternativo e subsidiário, feito por juiz ou tribunal particular ou, na linguagem da Lei 9.307/96, por árbitro ou câmara arbitral, contratados e pagos especialmente para essa finalidade. Não se confunde com a transação, tendo já muito se escrito sobre esta, mas pouco sobre arbitragem.
Ao contrário do que ocorre com os juízes e tribunais do Estado, na arbitragem: a) as partes podem escolher aquele que será seu julgador; b) o acesso restringe-se tão somente àqueles que podem pagar por seus serviços e, mesmo assim, em algumas situações, desde que o caso seja aceito pelo árbitro ou câmara arbitral procurado; c) as partes podem escolher se desejam um julgamento com ênfase na legalidade ou na equidade, ou seja, se desejam que o julgador decida de forma preponderantemente técnica ou com base em imperativos éticos de justiça, seja qual for a concepção de justiça imaginada, e os modelos de justiça como virtude social não são poucos; d) as partes somente podem utilizar esse método se houverem antes acordado fazê-lo, possuírem capacidade civil para tanto e o caso atender aos requisitos de arbitrabilidade, nos termos previstos na Lei 9.307/96, na forma prevista ou não vedada, explícita ou implicitamente, pela Constituição Federal, bem como de acordo com a legislação infraconstitucional incidente sobre cada espécie de fato social juridicamente relevante.
Se presente a confiança no julgador (árbitro), o método parece sedutor, porque promete imparcialidade, celeridade, irrecorribilidade de suas decisões[i] e força executiva semelhante à de um título executivo judicial e, sobretudo, nos casos em que se opta pelo julgamento preponderantemente técnico, um julgamento levado a termo por alguém que é profundo conhecedor da matéria sob discussão.
No Brasil, a arbitragem é regida pela Lei 9.307/96 com as importantes alterações da recente Lei 13.129/15 que, entre outras inovações (artigo 1º, §1º), permitiu a utilização da arbitragem para a solução de controvérsias envolvendo a Administração Pública, direta e indireta, desde que a lide gire em torno de direitos patrimoniais disponíveis.
Diante das altas taxas de congestionamento do Poder Judiciário, da inefetividade da cobrança da DAU (Dívida Ativa da União) por parte da PGFN, da instabilidade da jurisprudência dos tribunais superiores e da constante reclamação quanto à qualidade técnica dos julgamentos em diversas áreas, especialmente na área tributária, muitos têm pregado o uso da arbitragem para solucionar controvérsias entre o Fisco e o contribuinte. Já há no Brasil, inclusive, o PLP 469/2009 (projeto de lei complementar), atualmente aguardando parecer do relator na Comissão de Finanças e Tributação (CFT), o qual acrescenta ao CTN o artigo 171-A, cuja redação é a seguinte: “A lei poderá adotar a arbitragem para a solução de conflito ou litígio, cujo laudo arbitral será vinculante.”
No plano tributário, na prática, ações ordinárias (anulatórias, declaratórias e de repetição de indébito), além de embargos à execução fiscal, poderiam ser decididas por juízes e tribunais privados.
Seria isso possível do ponto de vista constitucional e infraconstitucional, bem como diante de nossa jurisprudência e tradição doutrinária? A seguir, algumas reflexões para contribuir com a construção do debate em torno do tema.
Argumentos contrários e seu exame
Os principais argumentos contrários à adoção da arbitragem em matéria tributária no Brasil são os seguintes[ii]: a) o crédito tributário não se inclui entre os “direitos patrimoniais disponíveis”, conforme previsto no artigo 1º, §1º, da Lei 9.307/96; b) a arbitragem implica na violação do princípio da estrita legalidade e do comando legal que determina sua cobrança através de atividade plenamente vinculada, ou seja, sem qualquer margem de discricionariedade; c) a submissão de uma demanda fiscal ao método privado de resolução de conflitos importa na negação e na renúncia da jurisdição estatal; d) a ausência de previsão legal específica, não sendo suficiente o permissivo genérico constante do art. 1º, §2º, da Lei 9.307/96; e) a ausência de qualquer interesse público nesse tipo de resolução de conflitos.
Além desses argumentos, acrescento mais três: f) a existência do procedimento administrativo da consulta (Decreto 70.235/72), para auxiliar o contribuinte no cumprimento de suas obrigações tributárias, principal e acessórias; g) a existência de tribunais administrativos altamente especializados no âmbito da União, bem como de alguns estados e municípios, a exemplo do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Decreto 70.235/72), que conta com julgadores integrantes do Ministério da Fazenda, mas também com julgadores representantes dos contribuintes, geralmente indicados entre profissionais experientes e especializados na temática; h) sendo a receita proveniente da tributação a principal fonte de renda do Estado, bem como instrumento de redução das desigualdades sociais e regionais, a relação jurídica tributária e suas controvérsias é sensível sob o aspecto político, porque possui repercussão em toda as políticas públicas estatais.
De saída, adianto que, a nosso sentir, nenhum dos argumentos impede a eventual adoção da arbitragem em matéria tributária no Brasil, embora alguns deles possam, deveras, constituir-se em argumentos idôneos para subsidiar opção política contrária ao método de solução de controvérsia em discussão. Analisemo-los um a um.
O crédito tributário não se inclui entre os “direitos patrimoniais disponíveis”, previsto no artigo 1º, §1º, da Lei 9.307/96 [iii]: para os que invocam esse óbice, o crédito tributário não é valor que possa ser objeto de renúncia, transação, desconto ou qualquer tipo de negociação, a não ser nos estritos termos de lei específica a tratar desse tipo de disponibilidade, como ocorre com as anistias, os parcelamentos, os já sazonais programas de recuperação fiscal, as renúncias fiscais de qualquer espécie entre outros. Deveras, esse argumento é indefensável. No Brasil, o patrimônio público, seja ele um imóvel, um bem móvel ou valores pecuniários não podem ser objeto de livre negociação pelos gestores, em razão de sua indisponibilidade. Especialmente em matéria tributária, essa indisponibilidade assenta-se na adverbial determinação constante do artigo 3º do CTN, no sentido de que a atividade da tributação deverá se desenvolver de forma não apenas vinculada, mas “plenamente vinculada”. Todavia, o problema não é transpor esse argumento, o que não é possível, mas simplesmente rechaçá-lo posto que inaplicável, uma vez que a arbitragem, em nenhuma hipótese, implica na negociação do crédito, já que se trata de resolução da controvérsia através de julgamento, não de transação ou conciliação de qualquer espécie, a ser levado a termo por meio de juiz ou tribunal (câmara arbitral) particular que goze da confiança de ambas as partes.
A arbitragem implica na violação do princípio da estrita legalidade e do comando legal que determina sua cobrança através de atividade vinculada, ou seja, sem qualquer margem de discricionariedade: pela mesma razão posta anteriormente, o argumento não é aplicável. Aqui, acrescente-se que o julgador privado não poderá decidir por equidade ou “a lattere” da lei, mas com base estritamente na legislação de regência. Para além do artigo 108 do CTN, que até autoriza o uso da equidade, desde que não implique dispensa do pagamento “do tributo devido”, o certo é que, diante dos rígidos e explícitos princípios constitucionais previstos para a Administração Pública de forma geral (artigo 37 da CR), e para a atividade financeira e tributária do Estado de maneira particular (artigos 150 e 163 da CR), o uso dessa técnica decisória não é possível pelo julgador ao dirimir demandas tributárias. Nesse sentido, o artigo 140, parágrafo único, do CPC. Nesse ponto, parece procedente a crítica no sentido de que hoje, a arbitragem não seria possível, a não ser com base em futura lei específica a regular, dentre outros tópicos, esse dever de zelo pela estrita legalidade, bem como os limites dos árbitros e tribunais arbitrais.
A submissão de uma demanda fiscal ao método privado de resolução de conflitos importa na negação e na renúncia da jurisdição estatal: segundo essa visão, haveria uma imposição ao Estado, no sentido de buscar a jurisdição estatal, quando autor da demanda, no caso das execuções fiscais, por exemplo, ou de não negá-la, quando se encontre na condição de réu, exatamente em razão do monopólio do poder e da força detido por esse mesmo Estado. O argumento não merece ser acolhido pela simples razão segundo a qual, ao contrário do poder do Estado, que, embora titulado pelo povo, segundo a Constituição, é originário e incondicionado, não retirando sua força de nenhum outro poder a ele superior (teoria da soberania estatal), o poder dos juízes e tribunais privados é derivado, ou seja, é concedido pelo próprio Estado, sendo seu exercício somente possível, por isso mesmo, segundo as condições e termos estrita e legalmente fixados. Dessa forma, se lei estatal futura e específica admitir o uso da arbitragem em matéria tributária, a atuação dos juízes e tribunais privados nessa área só será possível em razão da autorização do próprio Estado, que a eles poderá se submeter, de tal sorte que não há que se falar em negativa ou rejeição, mas em submissão legal.
Ausência de previsão legal, não sendo suficiente o permissivo genérico constante do artigo 1º, §2º, da Lei 9.307/96: esse argumento, ao contrário dos anteriores, como pode ser deduzido do quanto já posto acima, é procedente. Deveras, as normas previstas na Lei 9.307/96, mesmo com as alterações da Lei 13.129/15, ainda não suficientes para permitir a instauração da arbitragem em matéria tributária. Primeiro, porque, como se trata de mecanismo que conduz à extinção do crédito tributário, bem assim que provoca alteração da obrigação tributária, surge a necessidade de mudança do CTN (artigos 97 e 156), lei ordinária que possui “status” de lei complementar, de maneira que imperiosa a edição de lei complementar para tratar do tema, nos termos em que determina o artigo 146 da Constituição da República. Em segundo lugar, há a necessidade (i) da fixação de diversos limites para o julgamento por juiz ou tribunal particular (câmara arbitral), a exemplo da já mencionada vedação de julgamento por equidade, (ii) da imposição de respeito aos precedentes, bem como aos tratados e convenções internacionais, (iii) da proibição de decisões com repercussão em outras entidades tributantes não adeptas do método, (iv) da proibição de repercussão em políticas públicas relacionadas ao combate das desigualdades sociais e regionais, (v) da proibição de desconstituição de atos praticados pelo Estado no uso do seu poder de polícia, bem como daqueles com repercussão criminal entre outros.
A ausência de qualquer interesse público nesse tipo de resolução de conflitos: esse argumento é bastante forte. Qual o interesse da Fazenda Pública em ter essas demandas fiscais julgadas por juízes e tribunais arbitrais? Por que razão o Estado criaria para si uma despesa extra, quando já, a duras penas, mantém um enorme complexo de juízes e tribunais públicos, aliás o que é feito em dois níveis distintos de governo? Além disso, o Estado mantém uma gigantesca máquina administrativa de arrecadação, em três níveis de governo. No âmbito federal, importante lembrar, existe, inclusive, um tribunal administrativo altamente especializado, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, com seu custo e uma missão bem definida a ser cumprida. Aliás, não custa enfatizar que ele é composto por representantes do Fisco e dos Contribuintes. Nesse caso, só faz sentido apresentar resposta afirmativa em favor da arbitragem em matéria tributária caso a meta seja reduzir o aparato estatal. Todavia, seria isso possível, quando se sabe que apenas pequena parcela teria acesso aos juízos arbitrais? Dessa forma, se este argumento não é impeditivo do mecanismo alternativo sob análise, ele é forte para subsidiar decisão política contrária.
Como último argumento contrário, aparece aquele segundo o qual, sendo a receita tributária a principal fonte de renda do Estado, bem como instrumento de redução das desigualdades sociais e regionais, a relação jurídica tributária e suas controvérsias é politicamente sensível, porque possui repercussão em toda as políticas públicas estatais: da mesma forma que o argumento anterior, este impulsiona a decisão política negativa. Note-se que não se trata apenas do receio pelo zelo do “interesse público”, mas das bases do próprio Estado, tal como desenhado pela Constituição, no que diz respeito à sua organização política, tanto do ponto de vista administrativo, quanto social, econômico e financeiro.
De fato, pensa-se a decisão arbitral como sendo melhor do que a decisão judicial, uma vez que, entre outros argumentos já apresentados na introdução deste texto, ela seria muito melhor tecnicamente e muito mais célere. Entrementes, surge uma pergunta persistente: é desejável que as decisões em matérias tributárias sejam realmente estritamente técnicas, no sentido de que perfeitas do ponto de vista dos institutos do Direito Tributário e da Contabilidade, pública ou não?
Há alguma diferença entre o sistema de referência jurídico-tributário dos juízes e tribunais arbitrais e dos juízes e tribunais estatais? Talvez aqui esteja a chave para se analisar acerca da conveniência política da adoção da arbitragem em matéria tributária, uma vez que, como visto, não parecem existir óbices normativos diretos, constitucionais ou infraconstitucionais.
Na segunda parte deste artigo, a ser publicada em breve, tentarei oferecer caminhos para a reflexão e resposta acerca destas indagações.
i CASADO FILHO, Napoleão. Arbitragem e acesso à justiça: o novo paradigma do Third Party Funding. São Paulo: Saraiva, 2017.
ii MENDONÇA, Priscila Faricelli. Arbitragem e transação tributárias. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2014.
iii MACHADO, Hugo de Brito. Transação e arbitragem no âmbito tributário. SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes e GUIMARÃES, Vasco Branco (Organizadores). Estudos em homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008.
Por Bianor Arruda Bezerra Neto, juiz federal na 5ª Região, doutor pela PUC/SP e professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1 de novembro de 2017, 7h22
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