Como se sabe, a vontade livre respeitante a bens disponíveis é elemento essencial da existência, validade e eficácia dos contratos para os fins da sua sujeição à arbitragem. Qualquer quebra dos parâmetros correspondentes terá efeitos negativos na sua vida jurídica. Nos limites deste texto nos propomos a iniciar a análise da maneira pela qual os árbitros devem discernir o elemento vontade na celebração de contratos, para o fim de tomarem a decisão adequada segundo o bom direito.
Dada a complexidade do tema ele tomará mais de um artigo desta série.
1. A soberania da vontade e a autonomia privada
Em algumas searas jurídicas ainda não foi muito bem percebido que o dogma da soberania da vontade cedeu lugar há muito tempo para a expressão da autonomia privada. O ponto tem a ver não somente com uma nova e mais moderna nomenclatura, mas com o reconhecimento de que a expressão da vontade das partes deixou de operar segundo o exclusivo arbítrio das partes (laissez faire, laissez passez) para subordinar-se ao âmbito previamente delimitado pelas constituições nacionais. No direito privado é reconhecida a liberdade das partes para o fim da celebração de contratos, representando o seu poder de autonomia, o qual é colocado dentro de parâmetros bem delineados, considerados de importância mais elevada, segundo os valores atribuídos pelo legislador.
Nos termos acima o voluntarismo (ou dogma da vontade) cedeu lugar em favor de um campo mais limitado do exercício da vontade individual.
2. A vontade contratual como categoria de fenômeno social. Sua formação e identificação
O contrato resulta da manifestação da vontade entre duas ou mais partes. Mesmo limitada, conforme o tipo de cada contrato, apenas as duas únicas partes, a vontade destinada à celebração (e à consequente execução do contrato) é caracterizada como um fenômeno social por dois motivos. Primeiro porque é essencial que se torne externa aos volentes (as duas partes do contrato), de forma a que cada uma delas reconheça-a em sua existência e também quanto aos limites do acordo pretendido. Segundo, para que o necessário reconhecimento jurídico e produza os efeitos externos desejados pelas partes.1
Há dois momentos no exercício da vontade, um o da sua declaração (que também pode ser manifestada de forma tácita) e outro relativo àquela dirigida para a produção de efeitos. Em relação a cada contrato, seja nominado ou inominado, essa vontade é específica, segundo a função econômica que as partes pretendem alcançar na sua celebração. Este aspecto também é verdadeiro quando se trata da utilização do negocio indireto, por meio do qual licitamente as partes ajustam um determinado acordo, mas com o objetivo de que ele produza efeitos relativos a outro tipo de negócio (necessariamente lícito). A consciência da opção por um negócio indireto deve estar necessariamente presente na conjugação das vontades das partes. Neste sentido, não pode a vontade de uma delas estar desvinculada da outra quanto à essência do contrato a ser efetuado.
No sentido acima aprendemos com Rodolfo Sacco e Giorgio De Nova2 que, na formação da vontade contratual, cada agente parte de considerações mais gerais sobre os seus próprios objetivos, passando a estreitá-la segundo um processo lógico: (i) deseja agir no sentido de um comportamento genericamente expressivo; (ii) passa a agir de acordo com um comportamento particularmente expressivo; (iii) pretende que seu comportamento seja interpretado por terceiros nos termos da expressão da sua vontade; (iv) deseja alcançar o significado do seu comportamento; e (v) deseja a validade jurídica do seu comportamento.
Observe-se que o conteúdo e a extensão da vontade das partes são sujeitos a variação tanto maior quanto mais duradouro for o tempo da execução do contrato, lembrando-nos do fenômeno da incompletude contratual sobre a qual já nos referimos nesta série de artigos. Esta situação evidentemente não ocorre nos contratos de celebração/execução instantânea.
No entanto, de acordo com os mesmos autores, problemas de identificação da existência de uma vontade contratual, do seu conteúdo e da sua extensão podem surgir entre as partes, em um processo de frisson, uma vez que determinadas circunstâncias podem levar a divergências (reais ou aparentes) entre a vontade interna do sujeito e a declaração correspondente, segundo algumas possibilidades: (i) a presença de um significado subjetivo da declaração do agente, que o árbitro deverá reconstruir, recorrendo a todos os elementos presentes na contratação (que podem ser localizados no tempo em momento anterior, presente e/ou posterior à celebração do acordo); (ii) um significado objetivo que, portanto, se revela claro ao intérprete, verificável no momento da declaração; (iii) um significado relativo (conhecido por terceiro); e (iv) um significado compreendido e concretamente reconhecido pelo destinatário. Observe-se que a hipótese do inciso (iii) acima corresponde, por exemplo, ao franqueador em relação a um contrato de cessão de franquia de um franquiado atual para outro novo.
3. Os contratos privados e os contratos realizados “no mercado”
Há uma diferença de tratamento jurídico entre os contratos privados e aqueles realizados no âmbito do mercado. Expliquemo-nos.
Evidentemente a arbitragem se dá preferencialmente no campo do Direito Privado, tendo sido aberta recentemente no Brasil uma janela para sua atuação em relação a acordos concluídos com agentes públicos. Não é neste sentido que o termo privado está sendo utilizado neste momento. Como privados, desejamos atentar para os ajustes celebrados entre duas partes, que os construíram individualmente, em plena condição de igualdade econômica e jurídica (a qual é implícita quando se trata de empresários agindo cada qual na realização de sua atividade). Tais contratos se caracterizam por uma singularidade, não existindo no âmbito dos celebrantes outro absolutamente igual.
Por outro ângulo, quando nos referimos a contratos realizados no mercado, eles correspondem àqueles celebrados em massa, tendo de um lado um empresário (que por meio deles realiza o seu objetivo) e do outro um grupo difuso de partes atuais e potenciais. Estas, na sua individualidade fecham contratos idênticos em grande quantidade, ainda que independentes uns dos outros, geralmente colocados no campo da adesão contratual plena.
No sentido acima, é diversa a maneira pela qual o aplicador da lei (no caso, o árbitro que julgará questões contratuais) deverá avaliar e aplicar a vontade das partes conforme o contrato seja celebrado no plano das relações individuais particularizadas e no mercado.
No primeiro caso dá-se a proteção às partes quanto à obrigação assumida quando os contratos tiverem sido celebrados em situação de erro, violência ou simulação. Portanto, nestes casos a vontade do prejudicado foi manifestada na presença de algum tipo de defeito, alheio ao seu intento.
No segundo caso, é necessário conciliar duas situações contraditórias, mesmo que tenha necessariamente havido um acordo de vontades quanto à conclusão dos contratos celebrados no mercado. De um lado observamos o empresário que busca o mercado e que em tese assume riscos mais elevados do que os que enfrentaria em relação aos contratos individuais. Isto porque na moderna economia do mercado o direito exige uma plataforma mínima de direitos e mais expressiva de obrigações quanto aos empresários diante dos consumidores, para que os contratos de massa possam garantir aos últimos maior certeza quanto à responsabilização dos primeiros nos casos em que surgem problemas com a mercadoria ou o serviço adquirido. Do lado do empresário esse aspecto aparentemente negativo é contrabalançado pela possibilidade de auferir lucros mais elevados, seja porque ele alcança uma quantidade maior de clientes, seja porque no mercado ele reduz os custos de transação, que seriam mais elevados na contratação privada.
Se o risco do empresário no mercado é maior porque ele estará sujeito a uma quantidade eventualmente mais significativa de demandas dentro de um esquema de garantias de peso mais sensível, de outra parte o valor individual daquelas é muito menor (mesmo na sua somatória) do que o prejuízo representado pelo rompimento de um contrato privado de montante elevado.
Evidentemente na situação atual do direito arbitral brasileiro não se chegou ainda à sua utilização para os contratos de mercado. E quanto aos contratos individuais, o julgador precisa ter necessariamente presentes os fatores relacionados à vontade, expostos brevemente neste texto.
No próximo texto daremos continuidade ao importante tema da vontade.
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1. Essa matéria foi tratada na nossa Teoria Geral do Contrato – Fundamentos da Teoria Geral do Contrato, Ed. RT, São Paulo, 2ª ed. rev. atualiz. e ampl., São Paulo, 2014, pp. 268 e segs.
2. In “Trattato di Diritto Civile“, 3ª ed., Turim, UTET, 2005, T. 1, pp. 416 a 422, passim.
Por Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.
Fonte: Migalhas – terça-feira, 10 de janeiro de 2017
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