Antes matéria incipiente na Administração Pública brasileira, a existência de compromissos arbitrais já é realidade nos contratos administrativos, usual e não limitadamente, nos contratos de concessões e nas parcerias público-privadas (PPP´s) de infraestrutura, alavancados principalmente em razão de previsão expressa nas respectivas legislações de regência[1]. Mas o que dizer do uso da arbitragem em diversas outras modelagens de parcerias existentes entre entes privados e públicos?
Neste artigo nos restringiremos a tratar de uma parceria bastante comum na área da saúde e da educação: os contratos de gestão, firmados entre entes privados, sem fins lucrativos, qualificados como organizações sociais – título outorgado quando preenchidos os requisitos estabelecidos em lei – e o Poder Público, regidos no âmbito federal pela Lei nº 9.637/98.
Atualmente, somente o Governo do Estado de São Paulo destina mais de R$ 5 bilhões para atendimento ambulatorial e hospitalar de saúde por meio de Organizações Sociais[2], números que expressam a grandeza e o vulto econômico do modelo, assim como a extensão de sua utilização.
Esta modelagem de parceria, decerto, remonta à implantação do modelo da denominada “administração gerencial” no Brasil, delineado pelo Plano Diretor da Reforma do Estado, cujo ápice foi a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/1998, com um nítido foco na obtenção de resultados, através da descentralização, capilaridade na execução e salutar primazia ao princípio da eficiência.
Não obstante sua aceitação tenha se dado de forma gradual e após incessantes e intensos debates, como igualmente ocorreu com o uso da arbitragem na Administração Pública, hoje já conta com uma aceitação mais clara e afirmativa dos órgãos de controle, principalmente após o julgamento da constitucionalidade do modelo de OS pelo STF em 2015[3].
Nesta oportunidade, a Suprema Corte firmou o entendimento de que a natureza jurídica do Contrato de Gestão é diversa dos contratos administrativos, pois a ausência de contraposição de interesses afastou o seu caráter comutativo e o seu intuito lucrativo, o que tornou inaplicável, inclusive, o dever constitucional de licitar (CF, art. 37, XXI).
Todavia, mesmo sendo parceiros e com objetivos mútuos e indissociáveis, com o compartilhamento da governança do contrato –v.g., obrigatoriedade de membro do Poder Público na composição no conselho superior da Organização Social – as relações negociais entre o parceiro público e o parceiro privado comportam frequentes litígios que, por vezes, colocam em risco a continuidade da prestação de serviços públicos assistenciais, especialmente quando judicializados.
E, embora o interesse público seja preservado independentemente da parte vencedora do litígio[4], a morosidade dos meios empregados para tal resolução tem repercutido negativamente na consecução dos objetivos comuns e deturpado a real finalidade do Contrato de Gestão. Nada mais controverso do que uma parceria, com interesses convergentes, consubstanciada precipuamente na eficiência, deixar de propor formas alternativas e céleres de resolução de conflitos[5], restando muitas vezes à cargo do Poder Judiciário o deslinde dos litígios.
A busca de objetivos comuns, a essencialidade e a tecnicidade dos serviços prestados militam favoravelmente à adoção de compromissos arbitrais nos Contratos de Gestão. A arbitragem, indutora da eficiência nas relações contratuais, poderá propiciar a especialização, confiabilidade e celeridade no cumprimento das obrigações contratuais, encorajando e justificando sua adesão mesmo com custos financeiros mais elevados.
Dada a consolidação da arbitragem nos dias atuais e tendo o princípio da eficiência como norteador primaz destas parcerias, não nos parece sensato que até hoje sua utilização nos Contratos de Gestão ainda seja modesta, quiçá inexistente, mormente quando considerados todos os seus benefícios.
A complexidade técnica e necessidades sazonais de modificações de seu escopo são diferenciadas de outras parcerias com o Poder Público. Mesmo com um procedimento de seleção bastante simplificado, sem os rigores formais da licitação, o Contrato de Gestão apresenta um escopo negocial bastante extenso, diversificado e mutante, que engloba em um mesmo instrumento a gestão administrativa, financeira e de pessoal (inclusive a gestão de servidores públicos cedidos!), compras de insumos, contratação de obras e serviços de engenharia, aquisição de equipamentos, contratação de pessoal especializado, entre outras atividades, com a remuneração do contrato baseada no cumprimento de metas e indicadores de desempenho.
E com toda esta complexidade e grande movimentação financeira de recursos, o que se observa ainda hoje, na prática, é a existência de conflitos patrimoniais de importância ímpar à saúde financeira do parceiro privado relegados a um segundo plano, procrastinados pela Administração Pública durante toda a vigência da parceria, eclodindo de forma danosa quando do seu término, criando vultosos passivos – financeiros e trabalhistas – e intermináveis litígios judiciais, prejudicando os futuros contratos que serão firmados e, por vezes, condenando a Organização Social ao encerramento de suas atividades assistenciais.
Não por outra razão, entendemos imprescindível a previsão de métodos de resolução de conflitos no Contrato de Gestão e o uso da arbitragem, com cláusula compromissória elaborada de forma a prever expressamente todos direitos patrimoniais que serão passíveis de seu uso. O descuido ou despreparo técnico na elaboração da cláusula poderá impedir ou dificultar em demasia a sua utilização, deslocando a incumbência ao Poder Judiciário[6].
Dentre as matérias que deverão ser elencadas no compromisso arbitral dos Contratos de Gestão, valoradas com o impacto financeiro de sua adoção, não deixaríamos de destacar, por exemplo, os ressarcimentos decorrentes do desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, decorrentes de alterações contratuais, aumentos sazonais dos serviços assistenciais prestados, aumentos dos valores dos insumos e dissídios coletivos das categorias profissionais superiores aos índices contratuais (quando previstos) e as indenizações de ilícitos contratuais e extracontratuais, decorrentes da inexecução dos serviços, rescisão contratual, inadimplementos financeiros e dos inadimplementos normativos. Outras matérias contratualmente conflitantes, de igual vulto e de natureza patrimonial, também deverão ser consideradas de acordo com as especificações do escopo do contrato.
No tocante ao custo financeiro da arbitragem, esse poderá ser oriundo de reserva financeira específica, com percentual fixo decorrente das verbas mensais dispendidas em favor da Organização Social ou do saldo decorrente entre o valor efetivo do contrato e o valor orçamentariamente reservado, similar às reservas financeiras emergenciais previstas no artigo 17, inciso II, do Decreto Federal nº 9.190/17.
Poderão também servir da aludida reserva financeira os ressarcimentos e indenizações decorrentes das respectivas sentenças arbitrais, restituídas de modo espontâneo e voluntário pelo Poder Público que, em uma visão doutrinária mais contemporânea e mais atenta à realidade atual, estariam dispensadas da expedição de precatórios ou Requisição de Pequeno Valor -RPV (artigo 100 da CF) em razão da existência de previsão dos recursos na lei orçamentária anual (artigo 167, II, da CF), o que remediaria qualquer possibilidade de descontinuidade dos serviços assistenciais em decorrência do endividamento indevido da parceira privada.
Nada mais afinado ao princípio da eficiência – um dos elementos basilares do modelo da administração gerencial – que a adoção da arbitragem nos contratos de gestão, cuja agilidade na resolução dos conflitos trará a preservação da eficácia esperada nestas parcerias e um maior êxito no cumprimento de suas finalidades e na cooperação entre as partes, ampliando os resultados positivos hodiernamente registrados, principalmente na área da saúde em prol do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desse modo, em que pese sua adoção ser juridicamente possível e com aplicação imediata, restando ao gestor público e à advocacia pública os estudos prévios e desígnio em sua utilização, não restam dúvidas de que o momento é propício para que a arbitragem e outros métodos alternativos de resolução de conflitos sejam incorporados na legislação das Organizações Sociais.
Atualmente tramita na Câmara dos Deputados, depois de aprovado no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 10720/2018[7] (origem PLS nº 427/2017) de autoria do Senador José Serra, que propõe alterações na Lei Federal nº 9.637/98, bem como projeto de lei[8] com a mesma finalidade na Assembleia Legislativa de São Paulo para alterações da lei estadual atualmente vigente, proposições que ainda poderiam albergar tais alternativas.
Finalmente e, sem o intuito de esgotar a matéria, o presente artigo tem, ao certo, o objetivo de indicar soluções para um modelo de parceria que, como já dito, é vastamente utilizado por diferentes entes da federação e que já proporciona resultados comprovadamente positivos, mas que, passados mais vinte anos de sua existência, padece de ajustes, notadamente justificados pelos avanços do direito administrativo brasileiro nestes últimos anos.
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[1] Neste sentido, hoje debate-se vividamente previsão, adequação e uso cada vez mais intenso da arbitragem nos contratos públicos. Mais do que isso, o Estado vem discutindo fortemente a ampliação do uso da arbitragem como método preferencial de resolução de litígios contratuais, o que denomino escolha estratégica pela arbitragem. E para determinados tipos de contratos públicos firmados em setores regulados específicos – a exemplo dos contratos de parceria oriundos de relicitação administrativa prevista na Lei Federal 13.448/17 – a arbitragem revela-se não somente uma possibilidade, mas tem caráter obrigatório. Cf. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A Agenda da Arbitragem com a Administração Pública: “Mais do mesmo” ou há espaço para inovação? In Contraponto Jurídico – Posicionamentos divergentes sobre grandes temas do Direito, Revista dos Tribunais Thomson Reuters, p. 30/31.
[2] Valores retirados da Lei Estadual nº 16.646, de 11 de janeiro de 2018 – Lei Orçamentária Anual 2018
[4] Neste ponto entendemos não haver partes diametralmente opostas na lide. As exigências específicas para outorga do título de Organização Social, como a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades, incorporação do patrimônio do ente privado ao Poder Público no caso de extinção, a previsão de membro do Poder Público nos órgãos de deliberação superior do ente privado, entre outras elencadas no artigo 2º da Lei Federal nº 9.637/98, e replicados em outras legislações sobre Organizações Sociais, de certa forma preservam o interesse público, independentemente da parte vencedora do litigio.
[5] A Lei Federal nº 13.019/14, conhecida popularmente como “Marco Regulatório do Terceiro Setor”, determina a obrigatoriedade de prévia tentativa de solução administrativa antes da judicialização dos conflitos, nos termos do seu artigo 42, inciso XVII.
[6] Tratar uma arbitragem que envolva a Administração Pública como se fosse uma arbitragem comercial comum impõe riscos quase que inevitáveis de judicialização dos procedimentos. Assim, o procedimento arbitral deve se revestir de recursos que permitam acomodar o regime jurídico de direito público, em diferentes intensidades, a depender da natureza jurídica do ente estatal envolvido. (OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Op. cit, pg. 39)
Por Gustavo Justino de Oliveira – Professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP. Árbitro, advogado e consultor em Direito Público. E Daniel Bulha de Carvalho – Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Advogado e Consultor Jurídico na área de Direito Público, com ênfase no Terceiro Setor.
Fonte: Jota – 15/11/2018
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