O direito de acesso à Justiça é de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais garantidos constitucionalmente. Na ausência de mecanismos para efetiva reivindicação de qualquer direito, a titularidade dos mesmos é de fato destituída. O direito à Justiça deve ser considerado como o mais básico entre os direitos humanos em qualquer sistema jurídico moderno, pós-moderno, pós-industrial e igualitário que tem a finalidade de garantir — e não unicamente proclamar — a garantia dos direitos a todos[1].
No célebre Acesso à Justiça, Cappelletti e Garth, evidenciando que a efetividade do direito material é garantida pela formalidade de um processo que permite a sua aplicabilidade, destacam que “[…] as Cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada e que qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva — com que frequência ela é executada, em benefício de quem e com que impacto social”[2].
A conciliação concretiza, assim como a mediação e a arbitragem, uma forma alternativa de resolução de conflitos. É feita mediante o conciliador, um terceiro neutro que exerce a função de orientar as partes em conflito para a unificação das recíprocas vontades, visando a realização de um acordo que seja aceito para ambas, em uma lógica de autocomposição dos interesses e em detrimento de uma lógica de imposição de sacrifício do interesse alheio[3]. Por Carmona, “o conciliador age no sentido de conduzir as partes a um consenso, sem afastar a sua vontade, sendo delas próprias a vontade que conduz ao acordo que põe fim ao conflito; na arbitragem, o árbitro age no sentido de substituir, pela sua, a inteligência e a vontade das partes, sendo que a sentença põe fim ao conflito, agindo o consenso apenas como móvel determinante da arbitragem. Na conciliação, a eficácia da decisão depende do consenso das partes; na arbitragem, esse consenso lhe é anterior, pois a sentença prescinde dele”[4].
O instituto da conciliação — como ensina o ilustre e recém-falecido professor Aloisio Surgik — tem origem no processo canônico. A função de “conciliador” era desenvolvida pela própria igreja, a qual convidava os litigantes à recíproca compreensão, fundamentando que cada ato finalizado a estabelecer uma concórdia era — de fato — relacionado à realização de um bem maior, representado pela paz de espírito e a transformação intersubjetiva capaz de contribuir eficazmente para uma verdadeira pacificação social. Em outras palavras, tratava-se de um procedimento de reconciliação, através do qual o conciliador, agindo diretamente na consciência dos litigantes e incorporando o sentido romano da transação, ajudava os litigantes a evitar os malefícios de uma controvérsia entre irmãos de fé e os desdobramentos dos conflitos[5].
Hoje em dia, no Brasil, a conciliação permite o direito de acesso à Justiça e está entre os direitos e as garantias fundamentais. Já em 2009, quando foi constituída a comissão de juristas para a elaboração do novo Código de Processo Civil, presidida pelo ministro Luiz Fux, surgiu a atenção sobre a necessidade de adotar e regulamentar os institutos da mediação e da conciliação, definindo até as diferenças no plano teórico[6].
É importante destacar que, enquanto as decisões das cortes são recebidas como sentencias judiciais unilaterais e impostas, as decisões tomadas em sede de conciliação parecem oferecer aos litigantes: a) um aprofundamento no exame das causas do litígio, não unicamente sob uma perspectiva jurídica; b) uma maior possibilidade de restaurar e recuperar o relacionamento que tinham antes da lide; c) a percepção — às vezes — de que a própria conciliação permite a realização de uma forma de Justiça justa e moral, considerado que se baseia em uma reconstrução pelas partes das recíprocas responsabilidades e da manutenção dos respectivos interesses.
Em particular, este último aspecto é relevante quando a finalidade da conciliação é exatamente a de resolver situações de conflito em relacionamentos longos, caracterizados pela continuidade e reciprocidade das prestações obrigacionárias e morais, e onde a simples definição de quem tem razão não resolve de fato o problema. A ratio do instituto é, portanto, atuar para privilegiar a conservação do relacionamento entre os litigantes, agindo e desfrutando aspectos jurídicos, morais e econômicos, além de emoções pessoais aptas a colocar as partes na posição de “participar” e “compartilhar” da própria decisão, em um plano de igualdade formal e — exceptis excipiendis — material e substancial[7].
A conquista da igualdade substancial, ou seja, a igualdade “efetiva”, com base na Constituição Federal de 1988, representa uma garantia fundamental para a conservação do Estado Democrático de Direito. No caso, a conciliação, assim como mediação e arbitragem, parece — muitas vezes — concretizar uma forma mais célere da Justiça, o que se torna uma garantia constitucional, assim como previsto pelo artigo 5° LXXVIII da Constituição Federal, que recita “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Além da garantia sobre a celeridade do procedimento, a conciliação vem procurando a pacificação social entre as partes, por meio da autocomposição da lide, harmonizando o fenômeno da assim chamada cultura do vencedor e vencido (passando de uma metodologia do confronto a uma metodologia cooperativa) e focando, principalmente, a maneira de encontrar a solução mais eficaz e eficiente, de acordo com o próprio tipo de sociedade desejada expressamente pelo preâmbulo da Carta Constitucional, que recita “fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacifica das controvérsias”.
Tentando um paralelismo com a origem canônica do instituto, à harmonia social, baseada na solução pacífica dos conflitos, reenvia também o ensinamento cristão do Papa Francisco, que lembra que o nosso tempo atual é também tempo da misericórdia (definida como o doar-se de Deus que acolhe, que se dedica a perdoar), e evidenciando que “acompanhando o Senhor, a Igreja é chamada a transmitir a sua misericórdia a todos os que reconhecem pecadores, responsáveis pelo mal praticado, que se sentem necessitados de perdão”[8]. Trata-se da mesma misericórdia que é possível encontrar também entre as linhas dos princípios fundamentais do sistema de Direito.
Além do direito de acesso à Justiça, a Constituição Federal prevê, entre os Direitos e Garantias Fundamentais, princípios expressos que preservam o efetivo exercício do Direito como o amplo direito à defesa e o direito ao contraditório no devido processo legal, seja este judicial ou extrajudicial. Em particular, ressalta destacar o artigo 37 da Constituição Federal, que trata do Princípio da Moralidade como um dos princípios fundamentais da atividade administrativa, demonstrando que a Carta Constitucional in primispreocupou-se com a definição e o respeito de padrões de conduta das autoridades públicas e privadas: a) estabelecendo valores fundamentais, como — entre os demais — a dignidade da pessoa humana, a justiça, a igualdade, a liberdade, a segurança e a estabilidade das relações; b) instituindo um modo objetivo e impessoal de atuação, identificado no Estado Democrático de Direito e fundamentado no princípio da separação dos Poderes (que atribui não só ao Judiciário o exercício da função judiciária); c) criando procedimento de defesa dos direitos dos cidadãos; d) criando requisitos para o ingresso na função pública; e) instituindo mecanismos de controle da atividade administrativa[9].
Por Bobbio, a constitucionalização dos remédios contra o abuso ou a ineficácia do direito de acesso à Justiça ocorre também através do assim chamado constitucionalismo do direito — entendido como a subordinação de todo o poder estatal ao Direito —, é o processo de realização do Estado de Direito, ou seja, no Estado no qual todo o poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam sua competência e orientam suas decisões[10].
A conciliação, qual meio alternativo de resolução das controvérsias, não possui, portanto, uma única conotação formal, identificando o procedimento por meio do qual o terceiro — dentro do respeito do constitucionalismo — ajuda a “construir a solução” do conflito, mas também possui uma conotação material, sendo que o próprio termo “conciliação” indica a compreensão e o reconhecimento por parte dos indivíduos a viver e procurar a solução aos próprios conflitos no respeito das instituições políticas, econômicas, judiciárias e sociais, e os respectivos valores, que garantem princípios fundamentais como o da dignidade, da liberdade e da justiça[11]. É exatamente na conceptualização da moral da justiça [e da misericórdia religiosa], qual valor e princípio constitucional, que pode se individuar o “lugar”, onde a atividade facilitadora do conciliador ajuda a acontecer, entre os litigantes, o que os filósofos e os teóricos do Direito chamariam de encontro dialético entre a vontade e a ação [no caso, de abandono da lide][12].
Em uma sociedade permeada pelos conflitos de qualquer natureza, e que quer instaurar um novo paradigma das relações sociais, baseadas na cooperação e na solução pacífica dos conflitos, sem querer [de forma alguma] diminuir a importância e a legitimidade do Poder Judiciário — ao qual sempre é reservada a realização da função de administração da Justiça —, a conciliação é um meio que concretiza, ao mesmo tempo: a) a formalidade de um processo rápido, eficaz e juridicamente reconhecido como alternativo à atividade jurisdicional do Poder Judiciário; e b) a tutela de um conjunto de interesses, que se baseiam na busca da harmonia social e na solução pacífica das controvérsias, abandonando a lógica sociológica da imposição de uma Justiça unilateral entre vencedor e vencido, privilegiando a lógica de uma composição construtiva dos interesses envolvidos e das recíprocas responsabilidades.
[1] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução NORTHFLEET, Ellen Gracie. Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 12.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op. Cit. p. 12 – 13.
[3] GRINOVER, Ada Pelegrini; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Coord.). Mediação e Gerenciamento do Processo, São Paulo, Atlas, 2008. SGUBINI, Alessandra; PRIEDITIS, Mara; MARIGHETTO, Andrea. Arbitration, Mediation and Conciliation: differences and similarities from an international and Italian business perspective, 2004, consultável em www.mediate.com.
[4] CARMONA, Carlos Alberto. Curso de Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2013. Mas também em TRINDADE, Jorge; TRINDADE, Elise Karam; MOLINARI, Fernanda. Psicologia Judiciária: para a carreira da magistratura. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 85-86.
[5] SURGIK, Aloisio. A origem da conciliação, Tese (doutorado em Direito), Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 1984. O autor chama a atenção ao DecretumGratiani do XII século referindo-se à obra de sistematização e organização das leis e das coleções eclesiásticas realizada pelo monge Graciano. É interessante observar que o leitmotiv da coletânea é a responsabilidade espiritual: de aquisição da prova à sentença, o processo é realizado no respeito da pacificação espiritual ao fim de conseguir o bem maior, o bem publico. Veja-se também DELLA ROCCA, Fernando. Saggididirittoprocessualecanonico, Padova, CEDAM, 1961.
[6] Veja-se a reconstrução do sistema brasileiro feita por SCARCHILLO, Gianluca. Mediazione e conciliazione in ambito civile e commerciale:Profili di diritto dell’Unione Europea ed esperienze di Diritto Comparato, Napoli, Jovene, 2016, p. 150.
[7] NORTHFLEET Ellen Gracie, Novas fórmulas para resolução de conflitos. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O Judiciário e a Constituição. Brasília, Saraiva, 1994, destaca que: “O clima de informalidade e confidencialidade das sessões favorecem o esclarecimento de situações que talvez não aflorassem na sala das audiências. O diálogo que se estabelece entre as partes é mais verdadeiro porque envolve a inteireza de suas razões e não apenas aquelas que poderiam ser deduzidas com forma e figura de juízo”.
[8] PAPA FRANCISCO. O nome de Deus é Misericórdia (tradução de MOURÃO, Catarina), São Paulo, Planeta do Brasil, 2016, p. 37 e p. 86.
[9] Reconstrução realizada por ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, São Paulo, Malheiros Editores, 2015, p. 94 e seguintes.
[10] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Elsevier Editora, 2004, p. 86.
[11] RAWLS, John. A Theory of Justice, Cambridge, Massachusetts, and London, England, Harvard University Press, 1971, p. 462 e seguintes. A p. 473 literalmente se destaca: “[…] in a well-ordered society anyway not only do those standards define the public conception of justice, but citizens who take an interest in political affairs, and those holding legislative and judicial and other similar offices, are constantly required to apply and to interpret them”.
[12] CHIMIRRI, Giovanni. Ragione e azione morale. Conflitto e Conciliazione di Teoria e Pratica, Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 1997.
Por Andrea Marighetto, professor e advogado. Doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza, e doutor em Direito, summa cum laude, pela UFRGS. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Pádua. Especialista em Direito do Consumidor e em Direito Internacional pela UFRGS e especialista em Direito Internacional pela Academia de Direito Internacional da Haia e pela Organização dos Estados Americanos.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2017, 17h47
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