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Qualquer curso ou livro introdutório de arbitragem traz consigo uma seção com o tema das vantagens da arbitragem. Não é incomum que listem-se como vantagens da arbitragem a neutralidade, a expertise dos árbitros, a maior celeridade do processo (que diminui os custos associados ao litígio no tempo), a flexibilidade do procedimento e sua confidencialidade. É bem verdade que estas são características que ajudaram no desenvolvimento da arbitragem comercial no Brasil e no mundo.
Particularmente, a confidencialidade, tema deste post, é vista como um elemento importante do processo arbitral por permitir às empresas que limitem a exposição de sua atividade em processos litigiosos[i]. Até poucos anos atrás era comum, especialmente no Brasil, que se vissem regulamentos de arbitragem que indicavam que o processo arbitral seria confidencial (ou sigiloso), sem qualquer ressalva[ii].
Talvez esta característica fosse uma das razões pelas quais, por anos, criticou-se a utilização da arbitragem por entes da administração pública – afinal de contas, um dos princípios constitucionais que informam a administração pública brasileira é a publicidade (art. 37 da Constituição Federal). É bem verdade que, em rigor, a confidencialidade não poderia ser considerada um óbice para a administração pública participar de arbitragens, até porque os próprios regulamentos permitiam às partes afastar esta regra e realizar um procedimento não confidencial.
Em 2015, a Lei 13.129/15, que modificou a Lei 9.307/96, introduziu regra específica indicando que a arbitragem com entes da administração pública deverá respeitar o princípio da publicidade (parágrafo 3o do Art. 2o da Lei 9.307). Pretendia a regra sanar, de uma vez por todas, as dúvidas sobre a publicidade de procedimentos arbitrais envolvendo a administração pública.
Minha provocação neste post é a de que esta regra, na verdade, traz uma falsa ideia de solução a este problema. O ditame da lei se limita a estipular que a arbitragem com ente da administração pública deve respeitar o princípio da publicidade. Ele não é claro ao estabelecer o exato escopo do que se deve entender por princípio da publicidade.
Seria a publicidade de procedimentos arbitrais igual à prevista no processo judicial? Se este for o caso, então, os tribunais arbitrais, as partes e as câmaras arbitrais talvez devam se preparar para franquear acesso aos autos do processo arbitral a quem quer que seja: cidadão, empresa, entidade não governamental, jornalistas, e por aí em diante. Junto com isto viria a obrigação de realizar as audiências em locais que permitissem a entrada de terceiros como espectadores, tal como é possível no processo judicial. No limite, não seria difícil imaginar uma arbitragem envolvendo, por exemplo, a Petrobras e seus acionistas, com a mesma cobertura midiática que a operação Lava a Jato tem hoje em dia.
Desconfio que esta abordagem não foi o que o legislador teve em mente ao indicar que a arbitragem deveria respeitar o princípio da publicidade. O conteúdo semântico da noção de princípio da publicidade certamente dá margem à criação de regras e procedimentos diferentes (e, porque não dizer, melhores) das previstas para o processo judicial brasileiro.
O motivo desta preocupação reside no fato de que o excesso de publicidade (particularmente midiático) pode também gerar efeitos perversos para um processo (seja ele arbitral ou judicial). Um julgador (seja ele um juiz ou árbitro) tem o dever de se manter neutro, independente e imparcial – faz parte da noção básica de devido processo legal, princípio basilar do estado democrático de direito. A excessiva ingerência pública sobre um determinado processo pode gerar o efeito perverso de contaminar um julgamento que deve se pautar pelo respeito a regras e procedimentos.
É verdade que nestes dois casos os tribunais arbitrais não criaram um critério objetivo para delimitar o escopo da publicidade, mas estabeleceram um interessante juízo de ponderação que leva em consideração as circunstâncias políticas, jurídicas e a própria vontade das partes. É este juízo de ponderação que se sugere seja feito para preencher e compreender o conteúdo semântico da noção de princípio da publicidade, ao qual a Lei de Arbitragem brasileira faz referência.
Neste ponto, a noção de flexibilidade do procedimento arbitral permite que os tribunais arbitrais e as partes utilizem sua criatividade para atingir o objetivo legal de respeitar o princípio da publicidade e resguardar o procedimento arbitral. Certamente este é um exercício que deve ser realizado com base no caso concreto, mas é possível indicar algumas opções que poderiam ser utilizadas daqui em diante.
Em primeiro lugar, os atos processuais com efetivo conteúdo decisório devem ser públicos – este é o caso da(s) sentença(s) e de algumas ordens processuais (por exemplo, as que decidem pela existência de jurisdição e competência do tribunal arbitral). Em segundo lugar, parece perfeitamente lícito que o tribunal arbitral (a pedido de uma das partes ou mediante acordo delas) permita que ao menos alguns documentos sejam mantidos em estrita confidencialidade (como ocorre em alguns processos judiciais). Em terceiro lugar, as audiências podem ser públicas mediante a utilização de tecnologia de webstreaming, permitindo que terceiros a acompanhem e, ao mesmo tempo, resguardando a ordem de sua condução presencial[iii].
Em suma, ainda que seja compreensível a percepção de que a completa e irrestrita publicidade geraria mais confiança sobre a resolução de conflitos com a administração pública, não se pode permitir que esta mesma publicidade prejudique os objetivos do processo: resolver a lide de forma neutra, independente e imparcial. Em outras palavras, a retórica de atingimento do interesse público por meio de vasta publicidade deve ser interpretada cum grano salis. A arbitragem permite que as partes e os árbitros criem procedimentos diferentes dos tradicionalmente previstos no processo civil brasileiro, que concilie o dever geral de publicidade com o desenvolvimento de uma sadia política de Estado de resolver seus conflitos de forma eficiente, pragmática e justa.
Evidentemente, ainda ficam diversas dúvidas, particularmente sobre a forma de implementação de algumas das ideias aqui propostas: seria razoável exigir dos árbitros que dessem publicidade aos atos decisórios? É mais razoável que este dever incumba à parte integrante do Estado? As instituições arbitrais poderiam assumir algum papel na busca deste objetivo? Espera-se que este post (e os comentários a ele) possa ajudar na reflexão sobre o conteúdo semântico da noção de princípio da publicidade na arbitragem com entes da administração pública.
[i] Imaginem uma disputa comercial entre duas empresas sobre um segredo industrial: não é do interesse de nenhuma das partes que o processo seja público e que os detalhes do segredo industrial sejam revelados publicamente.
[ii] Este era o caso, por exemplo dos regulamentos da Câmara de Comércio Brasil Canadá, de 1998 (item 9.8) e da Câmara de Arbitragem CIESP/FIESP, anterior a julho de 2013.
[iii] A tecnologia de webstreaming tem sido utilizada em procedimentos arbitrais do ICSID sujeitos às regras do NAFTA. A tecnologia permite a transmissão, via internet, em tempo real, do vídeo e áudio da audiência.